Conheci Elise na 7ª série. Era a típica evangélica de classe média adolescente, com tudo o que manda o figurino: cabelo comprido até a cintura, aversa ao uso de calça, desleixada com os estudos e consigo mesma. Gostava de praticar esportes, por isso ia bem em Educação Física, talvez por isso a única área em que conseguia nota acima da média. Na capa do fichário, uma única foto de rosto do ator Brad Pitt cobria o espaço. Mas a fala arrastada e o olha de bagre-morto denunciavam um outro destino para ela. Elise não seria uma mãe de família, tampouco uma fanática religiosa gorducha e de cabelo ensebado com sete filhos a tiracolo. Nem optaria por nenhuma dessas carreiras disponíveis nos manuais de vestibular. Como Édipo, Elise já possuia um destino traçado. Era apenas, claro, uma questão de tempo.
O que não demorou muito. Os primeiros sinais apareceram logo no ano seguinte. Na 8ª série, ela havia cortado os cabelos e aderido ao uso de saias hippies. Na verdade, adotara não apenas um visual, mas uma postura "alternativa" também. O olhar de bagre-morto havia se transformado em um ar blasé para tudo e todos. As aulas, até mesmo as de Educação Física, haviam se tornado apenas um contratempo inócuo para o grand finale que a vida lhe preparava.
Já no último ano do Colegial, Brad Pitt cedeu lugar a Marcelo D2 como ídolo. As aulas não eram mais assistidas, e sim dormidas, embaladas sob o fino efeito de maconha. No pescoço, ostentava uma piteira artesanal para tal fim, feita de bambu e Durepox. Sandálias de tiras de couro cru, saias indianas e blusinhas puídas cobriam seu pequeno e mirrado corpo. A única coisa que a remetia aos tempos idos era o desleixo com a aparência: banho parecia ser coisa cara e totalmente inacessível.
O Colegial acabou e perdi contato com Elise. Dois anos depois, pelos jornais, fico sabendo que ela havia sido fichada na polícia por ter tentado furtar uma cadeira de um shopping da cidade. "Era para uma república de um camarada", me disse, tempos depois, e um inesperado encontro no ônibus da faculdade, que ele havia subido como carona para chegar até a tal república. Não, ela não havia entrado em nenhum curso superior. "Ano que vem vou para a Espanha", respondeu apenas. O ônibus parou e novamente perdi contato com Elise.
Agora, cinco anos depois, a reencontro de maneira mais inesperada ainda. Na padaria onde costumo jantar (figura de linguagem, claro), no meio de uma discussão sobre incentivo cultural outras besteiras, vejo Elise entrar. O mesmo cabelo ensebado. A mesma saia indiana e blusinha puída. Chamo sua atenção. Ela se mostra surpresa com o comprimento do meu cabelo. Pergunto, claro, sobre sua vida. "Então, fui para a Espanha. Já faz cinco anos. Vim só para o Natal e Ano Novo, logo eu volto", diz. O que ela faz por lá? "Ah, virei hippie. Uma hippie européia", desembucha. Conta que vive de artesanato. Passou logo tempo em cidades do litoral e agora está nas montanhas. "Pulseirinhas, tornozeleira, colar, anel, essas coisa", detalha ela, antes de sair embora com um saco de pão e uma garrafa de Coca-Cola nas mãos.
A discussão na mesa reinicia, mas só consigo pensar numa frase que certa vez vi estampada na camisa do Bi Ribeiro, baixista dos Paralamas do Sucesso: a pessoa é para o que nasce. O dito é, na verdade, título de um documentário sobre três irmãs cegas de Campina Grande, na Paraíba, que vivem de cantar em troca de esmolas. Não assisti ao filme, que dizem ser de uma beleza ímpar.
Entretanto, o ar profético, e ao mesmo tempo cruel do título, me fez pensar numa hipótese que sempre descartei. A de que estamos atados a um fim já programado. Que não importa o que façamos nesse meio tempo, pois o resultado é um só e já está determinado. O mito de Édipo é perfeito nesse sentido. Era seu destino matar o pai e tomar a mãe como esposa, tal o oráculo havia previsto. De nada adiantou seu pai afastá-lo do seio da família e mandar matá-lo.
O mesmo pode ser aplicado a Elise. Ela jamais seria uma boa contabilista, uma enfermeira bem sucedida ou uma aeromoça aplicada. A escola, os sub empregos, a vida na cidadezinha do interior, os conselhos da mãe, a criação sob a égide da religião, de nada serviram. Na verdade, serviram apenas como antepasto. Podem ter enganado a fome do destino por um tempo, mas ele é insaciável até que se deleite com o prato principal, quando se esbalda e faz valer sua vontade.
Elise só poderia ter sido hippie. Assim como todos nós, não pôde escapar de seu destino. Ou não?
I'm Winston Wolfe. I solve problems.
terça-feira, janeiro 03, 2006
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3 comentários:
Acho que não tem como responder a esta questão simplesmente porque não sabemos para o quê nascemos. Então, como descobrir, lá pelas tantas, se estamos apenas cumprindo um destino previamente traçado ou se o estamos construindo com nossas próprias mãos? É um dos grandes mistérios da humanidade e deve ser discutido da maneira apropriada: numa mesa de bar.
Demorou então pra marcar esse colóquio, hehehe...
Porra Briga, essas mulheres que passam na tua vida me causa vertigem e inveja ao mesmo tempo. abraços (Paulo Corrêa)
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