TV a cabo é o maior embuste da era moderna. Te dá trocentos canais que você não consegue assistir UM que seja. Quero encontrar um sujeito que diga que "não perde um documentário sobre a tomada da praia de Omaha no History Channel" ou "aquele filmaço cucaracho no Telemundo". O fato é que ninguém consegue assistir ao que realmente quer na TV a cabo. Só quem tem sabe. E - olha só - isso pode ser uma vantagem. Principamente para insônes. Porque cedo ou tarde, você acaba surpeendido por algo que não esperava e acabar gostando.
Zapear pelos 32 canais do meu pacote básico é atividade idem para um início de madrugada. E geralmente começa pelo canal 32, o Max Prime, que tem programação voltada para filmes de todos os gêneros, épocas e idades. Nada muito novo, claro (para isso existem os Telecines e HBOs). E às vezes - beeeeeem às vezes - é possível topar com alguma coisa interessante. Aconteceu comigo numa dessas madrugadas, quando conheci "Spun".
Fui fisgado desde o início, quando os nomes dos atores e seus respectivos personagens começam a aparecer na tela com fontes estilizadas. No fundo, uma canção aparentemente desconhecida, entoada a base de banquinho e violão, pelo cabeça de abóbora Billy Corgan (que também é responsável pelo restante da trilha sonora do filme). "Esquisito", pensei, "a melodia não me é estranha". Aí vem o refrão e entrega tudo: "Six, sixty, sixty, the number of the beast. Hell and fire was spawned to be released". "Caralho! É ´The Number of the Beast´, do Iron Maiden. Só que em versão acústica! Eita...", pensei. Então fiquei e assisti até o final.
Além da presença ilustre de Corgan, a trilha sonora ainda conta com Ozzy, T-Rex, Hellacopters, e outros. Coisa fina para um fim de noite, para quando os neurônios já estão como o desses caras ou como os dos personagens do filme. Que, claro, só poderiam ter saído da cabeça do alucinadaço Jonas Akerlund, responsável pelos melhores e mais premiados videoclipes de gente como Maddona, Moby, Prodigy, U2, Cardigans, Smashing Pumpkins, Mettalica e Iggy Pop.
Daí explica-se a estética visual frenética do filme, montado em linguagem de videoclipe. Cheio de cortes e passagens rápidas, contraste de matizes, closes exagerados, captação de detalhes desfocados e mistura de animação, película e documentário. Lindo e eficiente, pois dá espaço para boas atuações de atores que, salvo exceções, resumem suas carreiras a filmes comportados e voltados para o grande público. Numa obra experimental como "Spun", dá pra ver a gatinha Brittany Murphy, por exemplo, se perfazendo em drogas e striptease; ou o eterno latin boy John Leguizamo nu, se masturbando com uma meia no melhor estilo Red Hot Chili Peppers.
E tem ainda a doce vocalista do Blondie, Debbie Harry, como uma motociclista lésbica durona; o assumido vocalista do Judas Priest, Rob Ralford, como dono de uma locadora de vídeos pornôs; e o próprio Billy Corgan como um médico suspeitíssimo.
Mas o melhor mesmo fica por conta do pai-de-todos dos drogadictos. Mickey Rourke, de botas e chapéu de couro brancos, interpreta um "inventor" de drogas, que passa o dia trancado num quarto de hotel barato, respirando (e piranco com) os gases de suas invenções, assistindo luta-livre e telefonando para prostitutas que atendem a domicílio.
E é nisso que o roteiro se apoia. As desventuras de um garoto e seu traficante em busca de drogas, de amores perdidos, a cura para um cachorro que ficou verde depois de ingerir substâncias suspeitas, policiais querendo aparecer na TV, enfim: nada sobre nada. Nada de muito importante. Nada que vá mudar a vida de ninguém. Mas tudo muito legal. O que, em se tratando de TV a cabo, já é muita coisa.
I'm Winston Wolfe. I solve problems.
terça-feira, janeiro 24, 2006
quarta-feira, janeiro 18, 2006
quinta-feira, janeiro 12, 2006
Divisão
- Vai, pode começar escolhendo. Um Beatle.
- Lennon.
- Esse já foi, você escolheu na última rodada. Escolhe outro.
- Tá. Ah... Ringo, vai.
- Tá. Um Rolling Stone.
- Mick Jagger.
- Um rei.
- Elvis.
- Já foi também, pomba! Checa aí.
- Verdade. Então quero... Jonnhy Rotten.
- Hum. Um branco.
- O Ozzy.
- Um negro.
- James Brown.
- Uma mulher.
- Courtney Love.
- Um ditador.
- O Johnny Ramone já foi, né? Então eu fico com o... Axl Rose.
- Um gay.
- Lou Reed.
- Um Turner.
- Ike.
- Um dos 3 Tenores.
- Pavarotti, claro.
- Um X-men.
- Wolverine.
- Aí, tá vendo? Você tá ficando com os mais legais de novo!
- Ué? Você me deixou escolher primeiro...
- Ah, não. Ô pai, olha o Lú trapaceando! Ele não sabe brincar direito.
- Lúcifer, deixa disso, meu filho...
- Eu, não, pai! Tenho culpa que o Jesus é bocó e só escolhe bunda-mole?
- Não escolho, não! Mas você sempre fica com os divertidos, enquanto só me sobra... ah, você sabe... E além do mais, o jogo é meu.
- Mas as peças são minhas.
- Mas as regras são minhas.
- Então escolhe outro pra brincar. Besta.
- Tonto.
- Chega os dois. Vou guardar isso. Você, já pro seu quarto lá embaixo e só saia quando eu mandar. E você a mesma coisa. E chega de manha.
- Tá bom, pai.
- Lennon.
- Esse já foi, você escolheu na última rodada. Escolhe outro.
- Tá. Ah... Ringo, vai.
- Tá. Um Rolling Stone.
- Mick Jagger.
- Um rei.
- Elvis.
- Já foi também, pomba! Checa aí.
- Verdade. Então quero... Jonnhy Rotten.
- Hum. Um branco.
- O Ozzy.
- Um negro.
- James Brown.
- Uma mulher.
- Courtney Love.
- Um ditador.
- O Johnny Ramone já foi, né? Então eu fico com o... Axl Rose.
- Um gay.
- Lou Reed.
- Um Turner.
- Ike.
- Um dos 3 Tenores.
- Pavarotti, claro.
- Um X-men.
- Wolverine.
- Aí, tá vendo? Você tá ficando com os mais legais de novo!
- Ué? Você me deixou escolher primeiro...
- Ah, não. Ô pai, olha o Lú trapaceando! Ele não sabe brincar direito.
- Lúcifer, deixa disso, meu filho...
- Eu, não, pai! Tenho culpa que o Jesus é bocó e só escolhe bunda-mole?
- Não escolho, não! Mas você sempre fica com os divertidos, enquanto só me sobra... ah, você sabe... E além do mais, o jogo é meu.
- Mas as peças são minhas.
- Mas as regras são minhas.
- Então escolhe outro pra brincar. Besta.
- Tonto.
- Chega os dois. Vou guardar isso. Você, já pro seu quarto lá embaixo e só saia quando eu mandar. E você a mesma coisa. E chega de manha.
- Tá bom, pai.
quarta-feira, janeiro 11, 2006
Pêlos
O negócio é que não tenho muitos pêlos. Embora as pernas e braços tenham quantidade suficiente para fazer um volume considerável, tal pelagem é de cor dourada, quase imperceptível para quem enxerga de longe. Num olhada rápida, sou é pelado. Ou depilado.
Entretanto, a natureza gosta de fazer piada. Como não tenho predisposição genética para vestir casaco - ao contrário do Bia e do Denis - acabei por ser contemplado com meia dúzia de longos e grossos grupos de pêlos esparsamente alojados no peito. O que é, convenhamos, ridículo. Pior que não possuir um peito cabeludo, é possuir um peito meio cabeludo. E isso me incomoda deveras, ainda mais por ostentar, do lado esquerdo do torso, uma tatuagem que custou duas horas de dor da mais lancinante e que merece ser mostrada em toda sua forma e traço.
O quê fazer então? Arrancar fora, claro. No começo, utilizava uma pinça. Em frente ao espelho do armário, arrancava os fios, um a um, com força. Mas doía demais para uma operação que, vá lá, nem era assim tão importante. Passei, então, para a depilação com lâmina de barbear. E funcionou. Enquanto faço a barba, deixo a espuma escorrer para o peito e raspo tudo. Eles crescem novamente, claro, mas eu raspo de novo e digo que o corpo é meu e quem manda nele sou eu. Não vou deixar um grupo de pêlos se amotinarem e fazer o que querem. Tenho uma imagem a zelar, oras.
Mas eis que, ao aparar a barba esta semana, olhei para baixo e vi minha barriga. Minha barriga, que mesmo não sendo nenhum exemplo de boa forma, é simpática e, encolhida, chega a dar a impressão que seu dono é chegadíssimo duma academia de musculação. Porém, ela tem pêlos.
Sim, minha barriga, mais que meu peito e até os braços, possui pêlos. E eles estão disposto numa formação até interessante, como se formassem um funil. Legal. Então deixo a espuma da barba escorrer um pouco mais. E passo o Sensor Excel na barriga.
Sou um homem de barriga nua agora. Ou melhor, de torso nu. Não há sequer vestígio de pêlos sobre meu tórax. Do pescoço até a cintura, estou liso como a virilha de uma atriz pornô norte-americana pronta para a ação. Achei que ficou legal. Um tanto estranho, ainda, mas legal. É como se nunca tivesse existido nada ali. Que coisa...
Entretanto, a natureza gosta de fazer piada. Como não tenho predisposição genética para vestir casaco - ao contrário do Bia e do Denis - acabei por ser contemplado com meia dúzia de longos e grossos grupos de pêlos esparsamente alojados no peito. O que é, convenhamos, ridículo. Pior que não possuir um peito cabeludo, é possuir um peito meio cabeludo. E isso me incomoda deveras, ainda mais por ostentar, do lado esquerdo do torso, uma tatuagem que custou duas horas de dor da mais lancinante e que merece ser mostrada em toda sua forma e traço.
O quê fazer então? Arrancar fora, claro. No começo, utilizava uma pinça. Em frente ao espelho do armário, arrancava os fios, um a um, com força. Mas doía demais para uma operação que, vá lá, nem era assim tão importante. Passei, então, para a depilação com lâmina de barbear. E funcionou. Enquanto faço a barba, deixo a espuma escorrer para o peito e raspo tudo. Eles crescem novamente, claro, mas eu raspo de novo e digo que o corpo é meu e quem manda nele sou eu. Não vou deixar um grupo de pêlos se amotinarem e fazer o que querem. Tenho uma imagem a zelar, oras.
Mas eis que, ao aparar a barba esta semana, olhei para baixo e vi minha barriga. Minha barriga, que mesmo não sendo nenhum exemplo de boa forma, é simpática e, encolhida, chega a dar a impressão que seu dono é chegadíssimo duma academia de musculação. Porém, ela tem pêlos.
Sim, minha barriga, mais que meu peito e até os braços, possui pêlos. E eles estão disposto numa formação até interessante, como se formassem um funil. Legal. Então deixo a espuma da barba escorrer um pouco mais. E passo o Sensor Excel na barriga.
Sou um homem de barriga nua agora. Ou melhor, de torso nu. Não há sequer vestígio de pêlos sobre meu tórax. Do pescoço até a cintura, estou liso como a virilha de uma atriz pornô norte-americana pronta para a ação. Achei que ficou legal. Um tanto estranho, ainda, mas legal. É como se nunca tivesse existido nada ali. Que coisa...
segunda-feira, janeiro 09, 2006
Canção para o fim da adolescência
When you're talking to yourselfAnd nobody's homeYou can fool yourselfYou came in this world alone...(alone)So nobody ever told you baby, how it was gonna beSo What'll happen to you baby?Guess we'll have to wait and see...1, 2....Old at heart. But I'm only 28And I'm much too young to let love break my heartYoung at heart. But it's getting much too lateTo find ourselves so far apartI don't know how you're supposed to find me latelyAnd what more could you ask from me?How could you say that I never needed youWhen you took everythingSaid you took everything from me...Young at heart. And it gets so hard to waitWhen no one I know can seem to help me nowOld at heart. But I mustn't hesitateIf I'm to find my own way outStill talking to myself. And nobody's home.....(alone)So nobody ever told us baby, how it was gonna beSo What'll happen to us baby?Guess we'll have to wait and seeWhen I find all of the reasonsMaybe I'll find another wayFind another dayWith all the changing seasons of my lifeMaybe i'll get it right next timeAnd now that you've been broken downGot your head out of the cloudsYou're back down on the groundYou don't talk so loud, and you don't walk so proudAnymore. and what for?Well I jumped into the riverToo many times to make it homeI'm out here on my ownDrifting all aloneIf it doesn't showGive it time to read between the lines'Cause I see the storm is getting closerAnd the waves, they get so highSeems everything we've ever known is hereWhy must it drift away and die?I'll never find anyone to replace youGuess I'll have to make it throughThis time, oh this time, without youI knew the storm was getting closerAnd all my friends said I was highBut everything we've ever known's hereI never wanted it to die
quinta-feira, janeiro 05, 2006
Filme pornô de chuva
- Droga de chuva. Me molhei toda. Me empresta uma toalha?
- Claro. Tome.
- Obrigada.
- Nossa, você é um tesão.
- Então me fode.
- Demorô, gostosa.
- Claro. Tome.
- Obrigada.
- Nossa, você é um tesão.
- Então me fode.
- Demorô, gostosa.
Filme pornô de Ano Novo
- Não vai ter post sobre o Ano Novo?
- Nem.
- Por que?
- Sigo o calendário Maia.
- Uau, que tesão. Me come?
- Demorô, gostosa.
- Nem.
- Por que?
- Sigo o calendário Maia.
- Uau, que tesão. Me come?
- Demorô, gostosa.
terça-feira, janeiro 03, 2006
A pessoa é para o que nasce
Conheci Elise na 7ª série. Era a típica evangélica de classe média adolescente, com tudo o que manda o figurino: cabelo comprido até a cintura, aversa ao uso de calça, desleixada com os estudos e consigo mesma. Gostava de praticar esportes, por isso ia bem em Educação Física, talvez por isso a única área em que conseguia nota acima da média. Na capa do fichário, uma única foto de rosto do ator Brad Pitt cobria o espaço. Mas a fala arrastada e o olha de bagre-morto denunciavam um outro destino para ela. Elise não seria uma mãe de família, tampouco uma fanática religiosa gorducha e de cabelo ensebado com sete filhos a tiracolo. Nem optaria por nenhuma dessas carreiras disponíveis nos manuais de vestibular. Como Édipo, Elise já possuia um destino traçado. Era apenas, claro, uma questão de tempo.
O que não demorou muito. Os primeiros sinais apareceram logo no ano seguinte. Na 8ª série, ela havia cortado os cabelos e aderido ao uso de saias hippies. Na verdade, adotara não apenas um visual, mas uma postura "alternativa" também. O olhar de bagre-morto havia se transformado em um ar blasé para tudo e todos. As aulas, até mesmo as de Educação Física, haviam se tornado apenas um contratempo inócuo para o grand finale que a vida lhe preparava.
Já no último ano do Colegial, Brad Pitt cedeu lugar a Marcelo D2 como ídolo. As aulas não eram mais assistidas, e sim dormidas, embaladas sob o fino efeito de maconha. No pescoço, ostentava uma piteira artesanal para tal fim, feita de bambu e Durepox. Sandálias de tiras de couro cru, saias indianas e blusinhas puídas cobriam seu pequeno e mirrado corpo. A única coisa que a remetia aos tempos idos era o desleixo com a aparência: banho parecia ser coisa cara e totalmente inacessível.
O Colegial acabou e perdi contato com Elise. Dois anos depois, pelos jornais, fico sabendo que ela havia sido fichada na polícia por ter tentado furtar uma cadeira de um shopping da cidade. "Era para uma república de um camarada", me disse, tempos depois, e um inesperado encontro no ônibus da faculdade, que ele havia subido como carona para chegar até a tal república. Não, ela não havia entrado em nenhum curso superior. "Ano que vem vou para a Espanha", respondeu apenas. O ônibus parou e novamente perdi contato com Elise.
Agora, cinco anos depois, a reencontro de maneira mais inesperada ainda. Na padaria onde costumo jantar (figura de linguagem, claro), no meio de uma discussão sobre incentivo cultural outras besteiras, vejo Elise entrar. O mesmo cabelo ensebado. A mesma saia indiana e blusinha puída. Chamo sua atenção. Ela se mostra surpresa com o comprimento do meu cabelo. Pergunto, claro, sobre sua vida. "Então, fui para a Espanha. Já faz cinco anos. Vim só para o Natal e Ano Novo, logo eu volto", diz. O que ela faz por lá? "Ah, virei hippie. Uma hippie européia", desembucha. Conta que vive de artesanato. Passou logo tempo em cidades do litoral e agora está nas montanhas. "Pulseirinhas, tornozeleira, colar, anel, essas coisa", detalha ela, antes de sair embora com um saco de pão e uma garrafa de Coca-Cola nas mãos.
A discussão na mesa reinicia, mas só consigo pensar numa frase que certa vez vi estampada na camisa do Bi Ribeiro, baixista dos Paralamas do Sucesso: a pessoa é para o que nasce. O dito é, na verdade, título de um documentário sobre três irmãs cegas de Campina Grande, na Paraíba, que vivem de cantar em troca de esmolas. Não assisti ao filme, que dizem ser de uma beleza ímpar.
Entretanto, o ar profético, e ao mesmo tempo cruel do título, me fez pensar numa hipótese que sempre descartei. A de que estamos atados a um fim já programado. Que não importa o que façamos nesse meio tempo, pois o resultado é um só e já está determinado. O mito de Édipo é perfeito nesse sentido. Era seu destino matar o pai e tomar a mãe como esposa, tal o oráculo havia previsto. De nada adiantou seu pai afastá-lo do seio da família e mandar matá-lo.
O mesmo pode ser aplicado a Elise. Ela jamais seria uma boa contabilista, uma enfermeira bem sucedida ou uma aeromoça aplicada. A escola, os sub empregos, a vida na cidadezinha do interior, os conselhos da mãe, a criação sob a égide da religião, de nada serviram. Na verdade, serviram apenas como antepasto. Podem ter enganado a fome do destino por um tempo, mas ele é insaciável até que se deleite com o prato principal, quando se esbalda e faz valer sua vontade.
Elise só poderia ter sido hippie. Assim como todos nós, não pôde escapar de seu destino. Ou não?
O que não demorou muito. Os primeiros sinais apareceram logo no ano seguinte. Na 8ª série, ela havia cortado os cabelos e aderido ao uso de saias hippies. Na verdade, adotara não apenas um visual, mas uma postura "alternativa" também. O olhar de bagre-morto havia se transformado em um ar blasé para tudo e todos. As aulas, até mesmo as de Educação Física, haviam se tornado apenas um contratempo inócuo para o grand finale que a vida lhe preparava.
Já no último ano do Colegial, Brad Pitt cedeu lugar a Marcelo D2 como ídolo. As aulas não eram mais assistidas, e sim dormidas, embaladas sob o fino efeito de maconha. No pescoço, ostentava uma piteira artesanal para tal fim, feita de bambu e Durepox. Sandálias de tiras de couro cru, saias indianas e blusinhas puídas cobriam seu pequeno e mirrado corpo. A única coisa que a remetia aos tempos idos era o desleixo com a aparência: banho parecia ser coisa cara e totalmente inacessível.
O Colegial acabou e perdi contato com Elise. Dois anos depois, pelos jornais, fico sabendo que ela havia sido fichada na polícia por ter tentado furtar uma cadeira de um shopping da cidade. "Era para uma república de um camarada", me disse, tempos depois, e um inesperado encontro no ônibus da faculdade, que ele havia subido como carona para chegar até a tal república. Não, ela não havia entrado em nenhum curso superior. "Ano que vem vou para a Espanha", respondeu apenas. O ônibus parou e novamente perdi contato com Elise.
Agora, cinco anos depois, a reencontro de maneira mais inesperada ainda. Na padaria onde costumo jantar (figura de linguagem, claro), no meio de uma discussão sobre incentivo cultural outras besteiras, vejo Elise entrar. O mesmo cabelo ensebado. A mesma saia indiana e blusinha puída. Chamo sua atenção. Ela se mostra surpresa com o comprimento do meu cabelo. Pergunto, claro, sobre sua vida. "Então, fui para a Espanha. Já faz cinco anos. Vim só para o Natal e Ano Novo, logo eu volto", diz. O que ela faz por lá? "Ah, virei hippie. Uma hippie européia", desembucha. Conta que vive de artesanato. Passou logo tempo em cidades do litoral e agora está nas montanhas. "Pulseirinhas, tornozeleira, colar, anel, essas coisa", detalha ela, antes de sair embora com um saco de pão e uma garrafa de Coca-Cola nas mãos.
A discussão na mesa reinicia, mas só consigo pensar numa frase que certa vez vi estampada na camisa do Bi Ribeiro, baixista dos Paralamas do Sucesso: a pessoa é para o que nasce. O dito é, na verdade, título de um documentário sobre três irmãs cegas de Campina Grande, na Paraíba, que vivem de cantar em troca de esmolas. Não assisti ao filme, que dizem ser de uma beleza ímpar.
Entretanto, o ar profético, e ao mesmo tempo cruel do título, me fez pensar numa hipótese que sempre descartei. A de que estamos atados a um fim já programado. Que não importa o que façamos nesse meio tempo, pois o resultado é um só e já está determinado. O mito de Édipo é perfeito nesse sentido. Era seu destino matar o pai e tomar a mãe como esposa, tal o oráculo havia previsto. De nada adiantou seu pai afastá-lo do seio da família e mandar matá-lo.
O mesmo pode ser aplicado a Elise. Ela jamais seria uma boa contabilista, uma enfermeira bem sucedida ou uma aeromoça aplicada. A escola, os sub empregos, a vida na cidadezinha do interior, os conselhos da mãe, a criação sob a égide da religião, de nada serviram. Na verdade, serviram apenas como antepasto. Podem ter enganado a fome do destino por um tempo, mas ele é insaciável até que se deleite com o prato principal, quando se esbalda e faz valer sua vontade.
Elise só poderia ter sido hippie. Assim como todos nós, não pôde escapar de seu destino. Ou não?
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