I'm Winston Wolfe. I solve problems.

quarta-feira, julho 04, 2007

Talvez



    Talvez um dia façamos música como se faz pastel na feira. E a consumiremos da mesma forma, com uma fome desleixada e nada mais. Um tira-gosto, lanchinho para enganar o estômago até a refeição principal, uma massa frita em óleo vagabundo com recheio duvidoso de sabor mais duvido ainda. Engolindo nacos do tamanho da nossa ansiedade, sentindo entre os dentes apenas a satisfação do dever cumprido, devoraremos as canções eleitas dentre as mais pedidas na linha de produção de críticos, produtores, DJ e engravatados tão preocupados, entendidos e sinceros com o que entregam quanto o pasteleiro no final da feira. É, talvez um dia colocaremos o dinheiro na frente de qualquer coisa e não sentiremos culpa alguma por isso. Quem sabe em porções de unidades pequenas recheadas apenas com lembranças do que deveria ter ali, embalado por uma casca bem cuidada. Então acharemos tudo muito bom e daremos graças por ser ainda tão barato e honesto se entupir de alguma coisa em pouco tempo sem precisar sequer sentar para tanto, pois logo caminharmos de volta ao que de fato importa sem pensar no que agora já é uma grande massa irreconhecível em algum lugar da parte de dentro a espera do descarte inevitável.

    Pode ser que, quando menos esperarmos, encararemos o cinema como um adolescente imberbe trabalha sua sede de viver. Qualquer nota, pegando logo pela embalagem mais bonita, o formato mais prático, o método mais rápido ou o preço mais atraente. É, talvez um dia colocaremos o dinheiro na frente de qualquer coisa e não sentiremos culpa alguma por isso. Influenciados por um universo de sentimentos e sentidos que embotam o raciocínio e nos reduzem a meros devoradores de metáforas e estímulos pré-fabricados exatamente com esse intento. Ao invés de consultarmos nossa memória afetiva e objetiva, cataremos o primeiro cardápio de indicações fáceis que estiver em um caderno se cultura qualquer e debruçaremos nossos olhos lustrosos embebidos em néon sobre a seqüência de cores e movimentos mais próxima. E o lugar do criador e sua criatura será para sempre relegado a um passado que ninguém vai ter força ou interesse para procurar, dentro de um buraco ao mesmo tempo raso e inacessível em seu propósito. E engoliremos a seco e sem olhar o rótulo qualquer conteúdo que nos oferecem vendendo como a mais milagrosa fórmula certa de prazer imediato, direto e direito.


    E quem sabe, não sei, pode ser que ler torne-se uma aventura tão impossivelmente distante que os poucos a seguirem sua trilha logo serão chamados de lunáticos, distópicos, distorcidos, desconexos, anormais, e até hereges. Os livros novamente serão condenados a alimentar fogueiras mais altas e brilhantes que aquelas de outrora, mas sem que ninguém registre o feito em qualquer tipo de linha maior que o entusiasmo por absorver seus ímpetos de destruição e sede por mudanças mal ou nada planejadas. É, talvez um dia colocaremos o dinheiro na frente de qualquer coisa e não sentiremos culpa alguma por isso. E tudo reduziremos a meia dúzia de capas duras com lombadas bonitas e trabalhadas para serem belas paredes em bibliotecas sem utilidade, aguardando o momento que uma nova ordem restabeleça seu lugar no imaginário que ajudaram a criar desde que nos colocamos de mãos postas para nossa própria história. Palavras jogadas sem sentido como rimas de paixão colegiais construídas com propósitos baseados em sinapses encharcadas de hormônios e sem nenhum tipo de compromisso ou singeleza tão caras para o que deveriam de fato. Encontros casuais de vogais e consoantes pintadas entre lacunas de pedantismo que oscilarão entre o descaramento puro e simples e a inocência mais perversa.


    Porra, talvez chegaremos mesmo, um dia, quem sabe, a amar como se amam os bichos de pelúcias esquecidos dentro de caixas guardadas em porões e sótãos, quando não feitos de mordedor para cães e aparador de unhas para gatos. Nutriremos então um afeto asséptico de chão de hospital, feito de interesses mútuos, desprovidos de sangue, suor e sacanagem. Uma reciprocidade correta, perfeitamente equilibrada, sem erros, sem riscos, livre daquilo que a faz ser o grande impulso criador e transformador que a tornou tão importante e perseguida de camponeses a reis, entre eras e impérios, dentro de carros de vidros embaçados e salas de estar vitorianas. Nada além de contratos com firma reconhecida e carimbos carcomidos pela hipocrisia da necessidade de uma segurança tão tola quanto frágil, apenas fabricada dentro da cabeça de quem não entendeu que o grande sentido de tudo é exatamente não ter onde se apoiar e dar o primeiro passo sem olhar se há chão ou apenas um grande vácuo. Uma lasca de afeição destinada apenas a manter a espécie dominando o planeta e nada mais de poesia, dançar pelado ao redor de fogos fátuos ou grandes goles de pauduro e juras de amor tão inalcançáveis que seria precisa um tipo de Magirus infinita para alcançar seu topo entre as nuvens de nossa consciência imersa em qualquer substrato que não aquele formado entre as artérias devastadas pela falta de amor próprio e excesso de entrega a qualquer próximo que se apresente logo em seguida do seguinte.



    Mas enquanto isso não acontece, vou me deitar aqui confortavelmente nesse musgo gostoso que cresce à sombra de uma mangueira centenária e descansar meus ouvidos, alimentar meus olhos e fazer tudo o que minha nudez literal e metafórica permite. Alguém me acompanha?

      2 comentários:

      Nuvens de Palavras disse...

      Que texto viajado, hein? Mas o quê aconteceu para você ter um olhar tão pessimista assim? Não desista de lutar! Não largue suas armas no chão com descaso! Pense em um horizonte mais bonito!

      Anônimo disse...

      Novo post no meu abandonado blog!